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As cadeiras ou a aventura da representação

 

Quando as crianças riscam as suas representações iniciais, após garatujas aparentemente enigmáticas, o mundo torna-se planificável, os objectos desdobram-se, as mesas e as cadeiras, num realismo lógico, apresentam pernas de facto perpendiculares aos seus tampos, em ângulos rectos, na mais “radical” radical das desocultações descritivas. Essa escrita “pura”, fascinante, alinhada e desobediente às leis da Natureza, e na qual o maravilhoso começa bem cedo a encher de sonhos os mais diversos contextos, virá confirmar-se às razões da razão, à emergência do conceito, mas não perderá nunca o apelo pelos caminhos da invenção – espaço essencial onde o ver e o representar se associam no modo de gerar as formas, de as distorcer, de as integrar na dimensão poética da arte. Qualquer representação comporta sempre a mobilidade intrínseca do ver, a poética e a mentira do arranjo adequado das formas para que estas exprimam, enfim, a verdade. O mundo dos objectos, com efeito, não parece verdadeiro, nem crível, se apenas o copiarmos como pantógrafos humanos. Ver é compreender, julgar, reinventar. Representar é tudo isso também, mas a aventura das metamorfoses, mais a liberdade do sonho, mais o direito à abertura e à construção polissémica das formas.
Se observarmos com atenção a obra plástica de Conceição Ramos, nesta fase das suas especiais representações, poderemos verificar que a experiencia proposta, sublinhada pelo gesto, pela clareza voluntariosa do fazer, pela noção e metamorfose das escritas primárias, se radica em parte na nossa anterioridade pictórica. Mas as cadeiras, que ela representa ou associa no espaço perdem, a breve trecho, a fisionomia da sua função estrita e alcançam pouco depois a qualidade específica da forma plástica, essa espessura particular, entre memórias quotidianas e alusões por vezes antropomórficas. Em boa verdade as cadeiras passam integralmente à qualidade de personagens.

(continua)

Sketchbook | Esboços

 

Sem se deter na estreiteza do raciocínio que conduz apenas à metamorfose poética, nem aos percursos conceptuais entretanto pressupostos, Conceição Ramos refunde o objecto temático, sobrepõe o realismo lógico às ocultações perspécticas, redesenha todas as elementaridades, ligando cada vez mais as grandes escalas à presença simbólica e cenográfica das várias representações/encenações, uma comunidade em parte litúrgica de seres, uma teatralidade instável em lugares pensáveis, o grande universo  - lúdico, diverso, texturalmente vibrante – onde cada criança em nós se recupera nos jogos de abertura ao imaginário e na saborosa nostalgia das coisas já longínqua mas que nunca morrem.
 

Rocha de Sousa (Crítico de Arte)
Abril de 1995

Aquele que vê
 

A obra plástica de Conceição Ramos, que prespassa do figurativo ao abstracto, é uma voz, um sentir e um ver pela primeira vez a realidade para além das ideias e imagens preconcebidas e cristalizadas, eivadas de ilusões de estabilidade, certezas e poderes.
Através de um fecundo esforço de libertação, ao observar e entender o mundo de, uma maneira nova, a pintora dá-nos uma expressão original da representação do objecto – cadeira, ao manipular as formas que são metamorfoseadas e transmudadas, elevando-as à condição de existência – seres vivos. No prazer da descoberta do jogo criativo das cores e das formas, percepciona-se na pintura um conflito entre o sentido tridimensional e a perspectiva bidimensional, assim como uma estrutura de equilíbrio dinâmico que geralmente contém a forma assimétrica desenhada pelo ritmo da cor, ao encontro da harmonia.
Ainda muito se têm a esperar do percurso de grande coerência da obra de Conceição Ramos, cuja brandura superficial encobre um carácter forte, emocional e persistente.

 

Diva Morazo (Mestre em História de Arte)

Dezembro de 1999

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